Já Ouviu? [Pt]: Interview about "Descalços Sobre A Terra" album
“JÁ OUVIU?” ENTREVISTA: FLÁVIA MUNIZ
“Já Ouviu?”: Flávia, quando você descobriu que gostaria de se tornar uma artista? Nos conte um pouco sobre esse processo.
Flávia Muniz: Aos 6 ou 7 anos eu queria ser atriz. Havia um baú cheio de roupas teatrais lá na casa da Usina. E eu era muito fã dos discos “Arca de Noé” e “Plunct plact zum”. Por outro lado, meu pai e minha mãe curtiam Chico Buarque e com essa idade eu lembro bem de ter ido a um show do MPB-4, no falecido Canecão. Nunca esqueci a cena deles cantando “A lua quando ela roda, é nova, minguante ou meia lua, é cheia”… Acho que foi por ali que o processo começou.
Como você começou a carreira?
Eu queria ser atriz. Fiz alguns cursos desde o colégio e tentei o vestibular pra teatro, mas não passei. Eu já gostava de cantar. Criamos a banda “1999” nos idos de 94. Depois entrei pra História, na UERJ, onde também fiz canto coral. A “1999” se apresentava na UERJ, Cantareira, IFCS, etc. Foi ali o início.
Você toca algum instrumento?
Quando montamos a “99” aprendi a tocar violão por pura insistência. Não fiz aulas. Toco um pouco de flauta transversa e cavaquinho, mas o que gosto mesmo é cantar.
O que te inspira na composição? Que assuntos viram música para Flávia Muniz?
A vida é o que inspira. E dentro da vida há tanta coisa. Emoção, cinema, teatro, gente, outros artistas, estudo, pássaros, silêncio, vento, invisível, arte, floresta… Eu sou bastante intuitiva. Acho que existem tipos de inspiração: pode ser um estado de atenção – um intervalo melódico de um espirro pode criar uma melodia. Ou uma distração atenta ao que costumo chamar de radinho de pilha de deus – nesse estado surgem aquelas músicas que parecem que estavam prontas.
Você tem algum tipo de formação musical? Considera importante esse saber mais técnico da arte para lidar com a música?
Fiz Escola de Música Villa Lobos. Minha primeira canção é dessa época. Inscrevi “O Fado” no Festival de música da Escola e fiquei colocada entre as dez primeiras, o que permitiu que eu fizesse a primeira gravação em estúdio – esse era o prêmio. Estudei um pouco na Escola Portátil de Choro: tive aula com a Bia Paes Leme! E depois fiz bacharelado em MPB, na UNIRIO. O bom de estudar música é que você aprende a ser humilde: sempre há mais aprendizado no vasto campo desse saber. E tem tanta coisa que nem sei… O bom da faculdade foi abrir os horizontes. O importante é criar meios de alimentar a curiosidade e a academia é um polo de pensamento. A curiosidade também é uma fonte de inspiração.
De que forma nasceu a ideia de criar a banda “Luisa mandou um beijo”? E de onde vem esse nome?
A “Luisa mandou um beijo” não é criação minha. Eu e Fernando Paiva (criador da Luisa) tocávamos juntos numa banda de MPB chamada “Candongas não fazem festa”. A banda de MPB acabou e o Fernando me convidou pra gravar uma fita k7 no porão da casa da Usina. A Luisa, inicialmente, era um projeto virtual. Jogamos as gravações na internet e pediram shows. Então montamos a banda. O nome é invenção do Fernando e é algo feito “Asdrubal trouxe o trombone”.
A banda já lançou três álbuns e teve algumas de suas canções incluídas em várias coletâneas internacionais, principalmente por selos de indie rock. Que tipo de som você acha que a banda faz? Como funciona pra vocês essa ideia da classificação?
O bom da LMUB é que nós somos pessoas com gostos bem diferentes. A ideia inicial era cantar em português, usar guitarras distorcidas com acordes de bossa nova. Depois veio a influência de cada um. Costumo chamar nosso som de rock simpático. A classificação é necessária pra que alguém se identifique com o que você faz, mas ninguém está estático numa estante estética. Estamos vendo e ouvindo de tudo o tempo todo. É impossível, por outro lado, dizer que um som é inclassificável.
Quais são suas influências no canto? Sua voz, doce e delicada, lembra construções do Grupo Rumo e, às vezes, a Nara Leão…
Pergunta-elogio, grata. Essa influência do Rumo foi intuitiva. Fiquei fã depois da crítica do Tárik [de Souza] (primeiro cd LMUB). Eu nunca tive essa coisa de ficar imitando as cantoras, mas algumas vozes marcaram a minha audição: Paula Toller, Rita Lee e Gal Costa. Depois fiz aula de canto com a Suely Mesquita. Outra coisa importante: as aulas de fisiologia da voz com a Mirna Rubin, na UNIRIO. Eu queria ter a capacidade de improviso de Bob McFerrin ou Ella Fitzgerald, mas acho que isso é sonho.
“Descalços sobre a terra” é seu primeiro disco solo, recentemente lançado pelo selo espanhol Elefant Records, com o quinteto “O Olho Mágico”. De onde surgiu o desejo de lançar um álbum sozinha?
Dar voz a própria voz. É que minhas canções são feitas de carne, osso, acordes simples e letras concisas. Eu queria contar uma história da formação do Brasil e da transição do velho para um novo paradigma. Eu quero falar das urgências da vida mesmo não falando nelas. “Descalços sobre a Terra” é um tributo aos ancestrais. A sonoridade eletroacústica do “Olho mágico” é um contraponto: utilizar a formação regional pra fazer música que flerta com o pop.
Você descreve esse álbum como uma tentativa de entender a formação cultural do Brasil e buscar nossas culturas ancestrais. Você pode falar mais sobre isso?
Que Gilberto Freyre me ajude! Batuque, mungunzá, mutamba, rede, abaeté, tucumã. A história do Brasil é recente. Nesse momento mesmo o país vive muitos desajustes. Vemos simultaneamente uma eleição de presidente da Comissão de Direitos Humanos que não está com os olhos voltados para os ancestrais e uma covardia imensa das autoridades que repetem e remontam a indignidade com os índios. Estamos no ponto de mutação: o sistema adotado está falido. Temos tecnologia e capacidade para resolver os problemas de todos. Precisamos ser humanos. Acho que falei bastante disso no meu livro “Bárbara e a baleia” e costumo utilizar a “Carta da Terra” como pano de fundo para tudo o que faço.
Esse trabalho traz influências do samba, do maculelê e de elementos da sonoridade indígena. E, novamente, um selo voltado pra o indie rock se interessou por lançar o álbum. De onde você acha que vem esse interesse? Ele é um disco de canções brasileiras com uma cara de música pop?
Falei um pouco disso já, né? Quando a Elefant ouviu minha música disse que era isso que eles procuravam pra lançar do Brasil. Eles são fãs da música brasileira da década de 60 e 70. Acho que perceberam esse ingrediente nas minhas canções…
Mais do que isso, o disco traz músicas com letras curtas, inteligentes, espertas e, ao mesmo tempo, melodias bem construídas em termos melódicos e harmônicos. Tudo isso é muito bem conciliado no trabalho, né?
Quando vejo eu já disse tudo em poucas palavras. Eu opto pela simplicidade. Acho que se eu soubesse mais música feito um Hermeto, talvez minhas canções ficassem com cara de Flora Purim. O bom disso é que faço música que parece comigo.
Você apontaria a tropicália como uma influência também?
Divisor de águas. Um movimento estético, sonoro e sensorial revolucionário. A ideia da antropofagia me agrada bastante. As canções, os artistas, os arranjos do Duprat. A primeira vez que ouvi aquilo eu queria gozar por todos os poros. É impossível negar a influência.
Quais foram os artistas que mais marcaram ou influenciaram a sua trajetória?
Gil, Caetano, Mutantes, Milton, Gal, Bethânia, Novos Baianos, Stereolab, Beatles, Bob McFerrin, Chico, Nara, Ná Ozzeti, Jorge Ben, Luis Melodia, Arnaldo Antunes, Geraldo Azevedo, Tom Jobim, Villa Lobos…
Como funciona para você o contato com o público? Você é uma artista que se divulga e busca esse contato ou gosta mais de fazer sua música? E os shows? Você gosta de se apresentar?
Sim, sim, gosto de fazer shows! Mas estou equalizando essa questão ideológica de mundo com a forma de me apresentar. Não consigo imaginar outras pessoas cantando a música que faço. Sou intérprete de mim mesma. Gosto de gravar, mas adoro mostrar a música ao vivo. Sempre imagino que um dia não serei tão tímida.
Algumas pessoas têm falado em uma espécie de movimento de novos artistas no Pará, com o tecnobrega, em São Paulo e, ainda, dessa nova canção carioca. Como você avalia as diversas cenas de música brasileira atualmente?
O tecnobrega é sensacional porque conseguiu criar uma nova forma de circulação da música. Aqui no Rio as pessoas estão criando espaços: ocupando as praças, as ruas, criando coletivos, as rádios estão voltando a ter programas ao vivo. É muito rico. A música de uma maneira geral é muito boa. Tudo dialoga com tudo. Tem que garimpar e dizer: já ouviu?
O que você acha que mais caracteriza os artistas da sua geração?
Quem tem minha idade foi criança na década de 80, adolescente na década de 90 e atravessou o século com a transição do cd pro mp3. Mas também considero que a minha geração é quem está contemporâneo meu. E, nesse sentido, vou pensar em graus de afinidade: existe uma sede de justiça, o retorno ao pé na terra e um grande desejo de mudança.
O que significa pra você criar artisticamente e ter que pensar com certa autonomia as formas de divulgação e distribuição do seu trabalho através da internet e das redes sociais?
Tem aquela coisa de descer o rio de bubuia. A gente tem que fazer malabarismo, mas sonha sempre com a calmaria. A gente vai fazendo e divulgando. Eu conto muito com a sorte.
E quais são as novidades da música brasileira que você curte?
Luiza Brina, Laura Wrona, Laura Lopes, Dimitri BR, Gabi Buarque, os meninos do coletivo Chama, André Pessoa, Liza K, gostei muito do novo disco do Alvinho Lancelloti e do Siba. Tem o pessoal do sarau da Beth Albano: Leandro Floresta, Daniel Fernandes, Dudu Godói, Rui Aragão. Vixe, tem é gente…
Você está por dentro da questão da PEC (proposta de Emenda à Constituição) da Música e da reforma da lei de Direitos Autorais proposta pelo Ministério da Cultura? Qual a sua opinião?
Agora estou num embaraço. Venho de um contexto na LMUB: nossos 3 cds são liberados pelo Creative Commons (temos o direito de autor, mas as pessoas podem utilizar nossa obra para criar vídeos, remixes, etc) e foi o que possibilitou as pessoas nos conhecerem em Singapura, Japão, Alemanha, Galícia, etc. O Ecad não vê isso com bons olhos. Quando a Elefant quis lançar meu trabalho, assinei um contrato de acordo com as leis do direito autoral da Espanha (copyright). Veja a contradição: eu que sou adepta das ideias “Ubuntu” – a humanidade para os outros -, me rendi (não sou dona do fonograma) pra ver meu sonho realizado. O disco gravado, financiado por um selo de médio porte na Espanha, o que não acontece no Brasil a menos que você aprove um projeto em edital, o que não é fácil. Acho que estamos vivendo um momento único: a internet e o compartilhamento vieram revolucionar as fronteiras da comunicação e da troca de informação e saberes. Isso é um longo assunto. A PEC é um avanço, assim como a reforma da Lei de Direitos Autorais. No caso do meu cd, é um belo produto, o design é de extremo bom gosto, deu muito trabalho pra fazer e será distribuído no mercado brasileiro pela Tratore.
Quais os próximos passos que você planeja para sua carreira?
Estou finalizando a edição do segundo clip. Quero lançar algum livro esse ano. Tem meu espetáculo interativo infantojuvenil que conta a história de uma criança que sonha em construir uma casa de bambu. Tem também a oficina “Quero ver verdejar” inspirada no meu livro de mesmo nome. Quero fazer shows para divulgar esse cd (que tem também uma edição japonesa) e pretendo no final desse ano começar a pensar no próximo álbum.
Você tem uma agenda que queira divulgar?
Dia 08 de maio Flávia Muniz e o Olho Mágico se apresentam no programa de rádio da Rádio MEC “Ao vivo entre amigos”, da Marina Barreto.
E por qual caminho (ou, por quais caminhos) você acha que segue a música brasileira atualmente?
Quem diz que o Brasil foi descoberto é porque ainda não descobriu o Brasil. O baterista do olho mágico, Thiago Kobe, teve uma iniciativa muito boa que foi sindicalizar a questão da música nas casas de show e reunir os músicos para tal conversa. Falar de caminhos da musica brasileira pra mim é falar da vida. Estamos em rede, na cidade da copa. Resta saber se queremos cultura como mercadoria ou bem comum.
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